Ela me olhou impressionada. Eu sorri e tentei lhe mostrar o meu lado mais doce e gentil, que ultimamente pouco existia dentro de mim.
- Beatrice, como você sabe, meu pai deixou que eu explorasse Avalon por cinco meses... Agora menos, pois o tempo passa muito rápido. Em breve eu me casarei, conforme foi decidido pelo melhor de nosso reino.
- Eu sei disto...
- E... Eu estou gostando muito de viver a vida como uma pessoa normal.
- Estou tentando entender como você pode estar gostando, mas continue.
- Como assim?
Ela riu e balançou a cabeça:
- Você só está gostando da vida lá fora porque nunca esteve lá, Alteza. Avalon não é bem como você imagina.
Beatrice... Você pode me ser talvez mais útil do que eu imaginei.
- A que exatamente você se refere? – perguntei curiosa.
- Nada... Esqueça.
- Quem sabe podemos ter esta conversa numa outra hora. – sugeri.
- Quem sabe, Alteza. – ela concordou.
- Bem, ainda quer ouvir o que tenho a pedir?
- Claro, me desculpe por ter mudado o foco da sua conversa.
- Eu... Quero que você tente convencer meu pai a deixar Alexander fora disto.
- Não entendi... – ela arqueou as sobrancelhas.
- Não quero ele comigo nesta jornada.
- Mas... Ele confia no rapaz. E pelo visto bastante.
- Bem sabemos que Alexander sozinho pouco poderia fazer por mim. Ele é só uma pedra no meu sapato.
- Como assim? Parece-me que ele zela muito pela sua segurança, Alteza.
Outra pessoa achando que Alexander era perfeito? Porra, literalmente porra... Ele era horrível, mentiroso e falso.
- Ele não me deixa fazer nada. – fingi estar triste e tentei forçar um choro que acabou não vindo. – É tão triste sair, ver garotos bonitos e não poder... Sequer conversar com eles. Vou viver uma vida sem conhecer ninguém a não ser meu marido.
Ela me olhou confusa. Eu continuei:
- Eu quero trocar meu primeiro beijo, Beatrice. Eu vou completar 18 anos. Eu preciso fazer isso, entende? Imagine que triste beijar pela primeira vez na noite de núpcias.
Vamos ver o quão inteligente e esperta você é, Beatrice. Você tem duas opções: fingir que acreditou em mim e tentar ser minha amiga. Ou me criticar e dizer que vai tentar e não fazer nada. Saberei somente quando tiver resultado positivo.
- Eu... Nunca pensei que vossa Alteza pudesse ter estes pensamentos. – ela disse.
- Sobre o quê?
- Beijos... – ela riu. – No fim, você é só uma garota.
- Quantos anos você tem? – perguntei curiosa.
- 22.
- Achei que fosse menos. – confessei.
- Agradeço o elogio.
Não era um elogio. Mas tudo bem, ela poderia acreditar que sim.
- Eu sou uma garota normal, como qualquer uma. A diferença é que eu tenho um título de princesa. Que só exercerei no dia que meu pai morrer.
- Eu sei... Mas por que acha que eu poderia intervir nisso?
- Sei que meu pai... É afeiçoado à você de alguma forma. Você mora no castelo, é recebida em vez de mim, que sou a filha dele. Come à nossa mesa...
Será que ela queria mais alguma coisa que provasse que eu sabia que ela tinha um caso com meu pai, o rei de Avalon? Eu não era idiota por ser uma princesa, muito menos ingênua ou burra. Parecia-me que era isso que ela achava de mim.
- Eu... Posso tentar.
- Poder não é o mesmo que querer, Beatrice. – arrisquei.
Ela suspirou:
- Vou tentar.
- Em troca, eu posso dizer a ele o quanto acho a sua presença boa para mim dentro do castelo.
- O... Obrigada. – ela disse confusa e envergonhada.
- Prefere que eu a chame de Beatrice ou “mamãe”?
Ela me olhou atordoada e levantou-se:
- Alteza, me desculpe se...
- Não se preocupe, Beatrice. Eu... Fico feliz se meu pai estiver feliz. – menti.
Pensa que eu não sei que vocês estão tentando fazer um bebê para me tirar do caminho e desejam a minha morte?
Ela sorriu e saiu.
Eu deitei na minha cama e sorri feliz. Acho que ela tentaria tirar Alexander do meu caminho. Em nome da minha aceitação do relacionamento dela com meu pai.
Reservei a sala de cinema que pouco era utilizada e à noite eu e Mia fomos até lá assistir um filme, conforme combinei com ela.
- Quero assistir um filme clichê cheio de palavrões. – eu disse enquanto escolhia.
- O que está acontecendo com você, Princesa?
- Ora, Mia, eu só posso me soltar através de filmes... E dos meus pensamentos. Eu já lhe disse que eu penso palavrões o tempo inteiro? E que eu tenho desejos pervertidos?
Ela me olhou confusa:
- Você nunca me falou dos desejos pervertidos. O que... Seriam?
- Nada tradicional.
- E o que seria nada tradicional? Não usar uma cama?
- Também.
Eu não queria falar sobre os meus pensamentos. Eles eram só meus. Eu poderia pensá-los e “despensá-los” como e quantas vezes eu quisesse.
- Eu quero assistir “Nunca fui Beijada”. – falei escolhendo o filme e trocando de assunto.
- Ah, eu amo este filme.
- E você sabe que é o meu preferido.
Embora já tivéssemos assistido inúmeras vezes, era sempre o que prevalecia quando queríamos só ficar juntas. O filme acabou e ela chorou, como sempre fazia.
- Nossa, algum dia você não vai chorar no final deste filme? – perguntei.
- É muito fofo.
Continuamos com as luzes desligadas, sentadas comendo pipoca e eu perguntei:
- Você gosta de Théo?
- Eu... Acho que estou gostando muito dele. – ela confessou.
- E acha que vocês vão ficar juntos?
- Eu gostaria que sim.
- O que impediria, além do idiota do seu irmão?
- Não sei... Embora eu só seja uma serviçal aqui, eu e ele somos de mundos diferentes. Ás vezes me acho tão prisioneira quanto você. Não me imagino saindo por aí, tendo um namoro comum como todo mundo. Por exemplo, como vou mostrar a ele a minha casa?
Eu sorri tristemente. Nunca havia pensado sobre isso.
- Você está tão fodida quanto eu, amiga.
Ela arregalou os olhos:
- Princesa, é você? Palavrões, piercing... Aliás, onde está seu piercing? Me diga, por favor, que Samuel tomou o lugar de Estevan.
- Infelizmente não, embora eu quisesse dizer que sim.
- Imagina você na sacada, quebrando os muros, com todo o povo olhando para você e sua bela coroa de rainha e seu discurso com este palavreado. – ela riu. – Juro que estou imaginando a cena.
- Pensei em dizer: Povo de Avalon... Eu vou mudar esta porra toda! E tentar arrumar a merda que o rei Stepjan fez. Vou tentar não foder tudo ainda mais.
Rimos tanto que chegamos a chorar. E fazia tanto tempo que eu não ria a ponto de doer a minha barriga e chorar de alegria. Só Mia conseguia fazer aquilo comigo. E ninguém mais.
Ainda assim eu não contava tudo a ela, embora muitas vezes quisesse. Minha vida era complicada e quanto menos pessoa eu envolvesse em tudo, mais seguras elas estariam.
O desjejum do domingo foi sozinha no meu quarto. E foi uma colaboradora do castelo que trouxe o meu desjejum e não Léia, como de costume. Parecia que ela estava fugindo de mim, afinal tínhamos uma conversa para acabar... Sobre o rei.
- Tudo bem com Léia? – perguntei.
- Sim, Alteza. Ela está resolvendo alguma situação com o filho e pediu que eu lhe trouxesse seu desjejum.
- Obrigada.
O que teria acontecido com Alexander? Bem que ele poderia ter sido chamado para trabalhar no outro lado do mundo, um emprego irrecusável. Ou então ele levou uma bala perdida enquanto a guarda treinava tiros. Bem, se fosse isso eu saberia. Não ouvi barulhos de tiros próximos. Ou quem sabe ele pegou uma doença horrível e morreria dentro de dois meses... Um, um mês era melhor.
Se ele não se mudasse, nem levasse um tiro, muito menos pegasse uma doença que lhe desse pouco tempo de vida, ele teria que enfrentar ainda a vingança de Satini Beaumont. E desta ele não escaparia ileso... De forma alguma.
Tranquei a porta e peguei o diário de Emy Beaumont. Eu ainda tinha um tempo antes do tradicional e imperdível almoço de domingo agora não somente com meu pai e sim “em família”.
Passei os olhos pela letra bonita e firme. Relatos e relatos sobre seus pensamentos e ideias políticas para o reino, ambas boas, mas bem ultrapassadas a meu ver. Tirei de perto a caneta marca texto que eu havia usado antes nas páginas envelhecidas e importantes. Nada mais seria feito ali a não ser passar os meus olhos.
“O túnel existiu desde sempre. Não tenho certeza se foi feito junto com a construção do castelo ou depois. O objetivo dele sempre foi a segurança da realeza. Por isso só quem sabia sobre ele era sempre o rei. Meu pai me contou sobre ele quando eu tinha 15 anos, por eu ser a futura rainha de Avalon. E aquele segredo ninguém sabia além dele e eu. E Stepjan achava saber tudo. Mas nosso pai nunca lhe contou sobre o túnel, elo entre o castelo e o mundo de Avalon. Ironicamente eu não usaria o túnel como forma de proteção ou segurança. Estava decidida a usá-lo para encontrar meu verdadeiro amor. Eu não conseguia mais ficar longe dele um minuto sequer.”
Fechei o diário e fiquei olhando-o confusa e sentindo meu coração bater mais forte. Havia um túnel no castelo? Onde ele estava? Aonde ele chegava? Elo de ligação até onde exatamente?
Olhei no relógio e já era quase meio-dia. Minha vontade era ficar ali e ler até o fim... Eu já estava quase acabando e aquela havia sido a maior revelação que minha tia deixou... Para alguém em não exatamente para mim. Se era um segredo tão grande, somente compartilhado entre os reis e rainhas, por qual motivo ela escreveu num diário, onde qualquer pessoa poderia encontrar? Havia alguém que deveria encontrar o diário? Ou eu achei por sorte do destino... Ou mesmo por Estevan. Penso que se ele não tivesse me dado o piercing, eu não teria deixado cair e jamais teria encontrado aquilo debaixo da lareira.
Olhei para a minúscula argola de ouro guardada com as minhas joias do dia a dia. Eu já não tinha mais vontade de usar aquilo no nariz. Fui até o closet e abri minha gaveta de joias, pegando uma pequena gargantilha em ouro. Retirei o pingente sem significado algum e coloquei a argola no lugar dele. Coloquei-a no meu pescoço, gostando o resultado: delicado.
Quando eu fechava meus olhos, eu conseguia ver os olhos cor de avelã dele. E podia ainda sentir sua boca gelada na minha bochecha. E meu coração doía de pensar que talvez eu nunca mais fosse vê-lo novamente. Mas se o destino não queria Estevan na minha vida, por que o mandou para mim? E não foi por uma, mas duas vezes. Isso não era coincidência. Morávamos num lugar enorme, com mais de trezentas mil pessoas. Não era possível que nos cruzássemos duas vezes por acaso e nunca mais nos veríamos novamente.
- Me diga que você ainda está perto de mim... Em algum lugar, Estevan. E que eu vou vê-lo novamente.