Capítulo 89
2504palavras
2023-02-06 11:34
Meu peito se contraiu ainda mais numa dor que fodia minha mente tanto quanto meu corpo. Voltei para o vidro da maternidade, olhando aqueles dois quilos de carne com boca e nome, se remexendo, tão frágil, tão bela, tão dependente de mim. A pediatra me observou atentamente e chamou-me com o dedo. A enfermeira foi até a porta e autorizou minha entrada.
Sentei numa poltrona, enquanto via outro bebê ir para o quarto, pois a mãe já havia voltado da sala de parto. Maria Lua foi trazida até mim, colocada sobre meu peito. Encarei aqueles olhinhos claros que se abriram na minha direção, parecendo sem foco, a pele enrugadinha, descascando levemente.
Sim, ela valia qualquer coisa. Era um amor que eu não poderia explicar em mil anos.

Ah, Heitor, abro mão de você ao mesmo tempo que aceito sua filha como minha. Quanta ironia. Quero odiá-lo pelo que fez, mas não consigo ao ver os seus olhos nos dela.
Tirando os olhos verdes, claros, que certamente ainda poderiam mudar de cor, ela era totalmente parecida com Salma.
- Vamos mostrar a você como usar a mamadeira – disse a pediatra – Já fez isso antes?
- Não – confessei, amedrontada, enquanto Ben me assistia do outro lado do vidro – Achei que ela seguiria usando o copinho com a fórmula para se alimentar.
- Não. O copinho é usado somente no hospital. Em casa, você vai usar a fórmula, na mamadeira.
- Ok, estou preparada.

A mamadeira pequena, de vidro, com a chupeta emborrachada maior que a boca da minha neném foi dada na minha mão. Assim que coloquei em sua boquinha minúscula, ela começou a sorver o líquido veementemente, fechando os olhinhos logo em seguida.
- A fórmula inicialmente será dada de três em três horas – ela explicou – E as visitas ao pediatra faremos quinzenalmente.
- Me diga que você nos atenderá. – Olhei para a jovem médica, que parecia realmente se importar conosco.
- Se você quiser, sim – sorriu – Será um prazer.

Suspirei, aliviada:
- Obrigada. Acho que não sobreviveríamos sem você. – Sorri de volta.
- Precisam registrar Maria Lua. – Ela olhou para Ben e me avisou.
- Como fazemos isso? – arqueei a sobrancelha.
- Não vai ser tão fácil. Vou conversar com seu amigo.
Ela saiu e a vi gesticulando enquanto conversava com Ben do lado de fora, um bom tempo.
Tivemos sorte de encontrarmos tanto o obstetra que estava de plantão e fez o parto naquela noite quanto a pediatra que parecia nos entender perfeitamente. Não sabíamos nada sobre bebês, mas queríamos desesperadamente aprender.
Assim que Maria Lua voltou ao berço, fui novamente para a recepção. Ben voltou horas depois, me entregando o registro de nascimento, que li, confusa:
- Você... Colocou o nome de Sebastian como pai? Por que fez isso? Está louco? – quase gritei.
- Não consegui fazer isso sem ajuda – me encarou. – Precisei dele. Existem lei, Babi. Precisamos da certidão para tirar Maria Lua do Hospital.
- Precisou de ajuda? Vai dizer agora que chamou Heitor e ele não pôde comparecer? – fui sarcástica - Não! Não vamos mudar de ideia. Ela é nossa, só nossa. – Contrai meu corpo, apertando os braços em torno de mim mesma, parecendo sentir o corpo quentinho de Maria Lua contra o meu. Como foi capaz de envolver Sebastian nesta história? – fiquei furiosa.
- Vá para casa. Você precisa descansar, Babi. Não vai aguentar muito tempo. Não vou conversar nada enquanto você não for para casa e descansar.
Olhei para ele. O relógio de parede marcava dezessete horas. Meu corpo parecia doente, como se eu estivesse ficado no chão por horas e todo mundo tivesse passado por cima de mim, ignorando completamente minha existência.
Levantei, peguei meu celular e reli a mensagem enviada por Heitor. Eu merecia cada palavra do que estava escrito ali. Ele jamais entenderia meu ato de amor à filha dele. Nem mesmo eu entendia.
Agora Ben tinha envolvido meu irmão naquela história. Tudo ia ficando cada vez mais complicado.
- Eu... Vou dar uma saída. – falei, indo em direção à porta.
- Não volte. Vá para o apartamento, tome um banho e durma. Não se preocupe que não sairei daqui sem você.
Assenti, com a cabeça.
Quando meus olhos encontraram a luz do sol, minha fraqueza pareceu ainda mais exposta, como se o mundo inteiro pudesse ver o quão frágil eu estava.
E eu sabia do que precisava. Algo que usei pouquíssimas vezes, mas que me deixou ativa, acordada, resistente e forte como uma rocha.
Peguei um táxi e fui parar longe dali, num dos piores bairros da capital de Noriah Norte. Fazia tempo que eu não entrava naquele beco, que já era escuro mesmo durante o dia. No final de tarde então, como naquele momento, era ainda mais sombrio e decadente.
Os olhos das pessoas nas calçadas e conversando dentro dos pátios pequenos, gradeados, voltavam-se para mim. Eu era estranha naquele momento. Fazia anos que não pisava ali.
Mas eu sabia o caminho de cor. E era como se o tempo não tivesse passado. Quando dei por mim, estava subindo a rua estreita, batendo na porta do homem que vendia drogas para Jardel. O mesmo que volta e meia o ameaçava de morte e mandava bater nele até quase matar, para lembrar-lhe das dívidas.
A porta se abriu e o homem moreno, de ombros largos e cabelos escuros me encarou:
- Você? – enrugou a testa, tão surpreso quanto eu por ter parado ali.
- Lembra de mim?
- Como esquecer da mulher que nunca desistiu do seu homem? – falou, não demonstrando sentimentos.
- Eu... Preciso de algo que me deixe alerta e forte. Sem muitos efeitos colaterais.
Ele riu, saindo da porta, abrindo passagem para mim. A mesa grande, em madeira, estava cheia de drogas variadas. Uma enorme pilha com LSD estava quase caindo, envergada de tanta quantidade. Ele estava embalando algumas.
- Aqui tudo tem efeito colateral, docinho – ele riu, me olhando dos pés à cabeça – E você sabe bem disso. E não preciso explicar que os efeitos são bons, não é mesmo? Mas o que são estes pequenos detalhes frente a tudo que lhe é proporcionado?
Olhei nos olhos dele e lembranças vieram à minha mente. Eu já tinha estado ali várias vezes, em busca de Jardel, que muitas vezes estava no quarto escuro no fundo do terreno, deitado, com a seringa injetada sem ter conseguido sequer retirar. Mais de uma vez ele não estava sozinho, acompanhado de mulheres, deitados numa cama, todos juntos, sem saber sequer quem eram e onde estavam.
O que eu estava fazendo ali? Que loucura passou pela minha cabeça quando fui parar naquele lugar?
- Quero qualquer coisa. – Falei, sabendo que sair sem levar nada era impossível.
- Cristal. – ele me mostrou num saquinho. – É nova. Você vai curtir.
- Pode ser.
- Maconha. É natural e você, mais do que ninguém, sabe dos efeitos. – Sorriu debochadamente.
- Os dois. – Falei nervosamente, pegando o dinheiro da bolsa com as mãos trêmulas.
Assim que paguei, me dirigi à porta e ele se pôs na minha frente:
- Quem diria que você apareceria aqui, depois de tantos anos... E tudo que houve?
- Também me impressionei de vir parar aqui. – Confessei para mim mesma, em voz alta.
Ele deu um sorriso trêmulo:
- Venha sempre que quiser. Recebo coisas novas antes dos demais em Noriah Norte.
- Ok.
Tentei abrir a porta, amedrontada. Só estávamos nós dois ali e aquilo não era nada seguro. Por sorte, ele me deixou sair.
- Pode chamar um táxi para mim? – perguntei.
- Não entra táxi aqui. Pode ir na boa. Ninguém vai mexer com você. - Garantiu.
- Obrigada. – Falei, saindo de cabeça baixa, com as pernas parecendo gelatina, de tão moles que estavam.
Levei alguns minutos para descer a ladeira e voltar ao limite do bairro. Assim que consegui sair na rua asfaltada e iluminada pelos postes, parece que uma nova vida foi me dada.
Chamei um táxi e quando percebi, estava pedindo para ir ao meu apartamento.
Subi as escadas sentindo um cansaço extremo. Abri a porta e deitei no sofá. Peguei o celular e olhei novamente a mensagem de Heitor. Tudo parecia um sonho, ou um pesadelo. Eu nem conseguia distinguir.
Doía a perda de Salma, doía abrir mão de Heitor, doía saber que ele dormiu com a minha melhor amiga e isso não importava que foi antes de me conhecer, porque o sentimento de raiva era o mesmo. Doía encontrar o amor da minha vida e jogar tudo para o alto, sabendo que talvez nunca mais pudesse ser feliz. Mas o que doía ainda mais era ter que ir ao lugar onde fui mais infeliz na minha vida buscar drogas a fim de curar a dor.
Abri a bolsa e olhei as coisas na minha bolsa. Retirei e meus olhos ficaram trêmulos e a visão turva. Não lembro quando dormi ou comi pela última vez. Fui com dificuldade até o banheiro e joguei tudo no vaso sanitário, dando a descarga e deixando ir embora pelo esgoto. Eu não precisava daquela porra. Eu era forte. Se não por mim, pela bebê que agora me pertencia e era minha responsabilidade.
Voltei para o sofá e deitei. Sabia que tinha que voltar ao hospital, mas não sabia de onde tirar forças para levantar.
De repente a porta se abriu e vi Daniel entrando. Ele me encarou, sem dizer nada.
- Você tem chave? – Perguntei.
- Sim, Salma de meu uma cópia – ele entrou e fechou. – Você... Não está bem.
- Acho que não – fechei os olhos – Minha cabeça dói e tudo gira.
- Está pálida. Precisa descansar.
- Acho que estou com fome. – Confessei.
Ele veio até mim e me ajudou a levantar. Levou-me até meu quarto e me pôs deitada, retirando meu calçado e cobrindo-me.
- Durma um pouco que vou fazer algo para você comer.
- Obrigada. – Fui incapaz de recusar.
Deitei a cabeça no travesseiro fofo e imaginei que não dormiria. Mas quando menos esperei, meus olhos se fecharam. E acabei adormecendo.
Despertei com Daniel me chamando. Ele havia feito uma sopa com alguns poucos legumes que tinham em casa. Me trouxe um prato na cama. E estava bom. Acho que comer algo leve me faria bem.
Me senti bem melhor depois da janta, conseguindo, inclusive, raciocinar.
No entanto, ainda de madrugada, depois de colocar o relógio para despertar, voltei ao hospital, acompanhada de Daniel.
Quando desci do carro, ele fez o mesmo.
- Você não está trabalhando hoje na Babilônia? – perguntei. – Não é segunda-feira para você estar aqui.
- Eu faltei. Não estou me sentindo muito bem.
- Ah, Daniel... – eu o abracei. – Me desculpe por ter sido tão fria com você nestes últimos tempos, quando tudo que fez foi ser legal com minha amiga.
- Tudo bem, Babi. – Ele alisou minhas costas.
- Eu sei que você também sofre, assim como eu e Ben. E sei que ela o amava, como nunca amou alguém na vida.
- Nunca duvidei dos sentimentos dela. Salma era uma excelente pessoa.
- Sim.
- Você vai ficar com a menina?
- Sim, ela me pediu isso.
- E... Sabe quem é o pai?
- Não – menti – Ela nunca quis contar.
- E se ele souber que ela estava grávida? Afinal, não temos muita certeza sobre esta história. Não tem medo de ele vir atrás e querer a criança?
- Eu creio que ele não sabia, Daniel. E caso saiba... Não sei o que fazer. Mas a última coisa que ela pediu foi que eu cuidasse da filha. E farei isso, não importa o que aconteça.
Entramos no hospital e nos dirigimos para a maternidade. Assim que chegamos na recepção do Berçário, vimos Ben deitado numa poltrona, quase dormindo.
- Babi? – ele levantou, quando me viu. – O que está fazendo aqui? Não ia descansar?
- Descansei e voltei. – Sorri. – Confesso que quase viajei e sumi, ficando fora por um bom tempo. Mas o que importa é que minha sanidade venceu. Sou uma vencedora, acredite.
- E eu não sei? – ele riu.
Fui até o vidro, ver Maria Lua. Ela estava dormindo.
- Só acordou uma vez depois que você saiu. – Ben disse. – E não chorou. É uma fofa.
- Ben, não fique longe de mim, por favor – o abracei, aconchegando meu minha cabeça no peito dele. – Eu não quero e não posso ficar sozinha.
Ele levantou meu queixo:
- O que houve?
- Eu quase fiz algo muito errado.
Ben me encarou, sem dizer nada. Não sei o que se passou na cabeça dele naquele momento, que ele não justificou, já que Daniel estava ali.
Daniel ficou conosco até amanhecer. Era nove horas quando a pediatra chegou e 11 horas quando finalmente Maria Lua foi dada nos meus braços, com a alta assinada, podendo ir para casa, com vária recomendações médicas.
Maria Lua foi o primeiro bebê que eu peguei no colo. Mas parecia que tinha feito aquilo a vida inteira, tamanha habilidade que eu parecia ter.
Daniel nos levou no carro dele e minutos depois me vi subindo as escadas do prédio, com um bebê no colo, cheia de bolsas e sacolas com fraldas e leite.
Ironicamente saí com uma camiseta do Bon Jovi e muitos sonhos na cabeça. Voltei com um bebê nos braços, sem a minha melhor amiga e cheia de bagagens.
Enquanto Ben abria a porta, olhei para aquele serzinho, que dormia feito um anjo no meu colo e me senti culpada por ter pensado em usar qualquer tipo de droga para acalentar minha dor.
- Ela está aqui conosco – ele sorriu tristemente – Eu sinto a presença da nossa amiga.
- Você não vai mais viajar para Itália, não é mesmo?
- Não... Não vou deixar vocês duas por nada... Nunca em toda a minha vida. Somos uma família... Para sempre.
Senti meus olhos embaralharem com as lágrimas:
- Deixei Heitor para ficar com a filha dele. Isso não é irônico?
- Eu duvido que ele teve culpa do que houve. Entende que ele sequer sabe? Ainda assim, você sabe o que eu temo: perder nossa Malu... Só isso.
- Ben, eu estou destruída de tê-lo deixado, mesmo sentindo raiva dele. Mas olho para esta criaturinha e meu coração simplesmente se renova. Que sentimento é este que me invade, tomando conta de mim completamente?
- Isso se chama amor materno. E você não precisa ter parido a criança para sentir-se mãe.
- Lembra que combinamos de ir beber no Hazard? – ri, olhando para ele.
Ben enfim abriu a porta do nosso apartamento e dei de cara com Sebastian, sentindo um frio na barriga.
- Que porra você fez, Babi? – ele levantou do sofá, me olhando de forma séria.